Que cultura que nada, a guerra contra o home office tem a ver com a mais valia
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Atualmente todas as notícias mostram a mesma previsão: o home office está com os dias contados. Mesmo para a área de tecnologia que a princípio parece menos afetada. As justificativas vão de fim da pandemia, produtividade, interação entre os times, até a nova queridinha das empresas: cultura (e a “dificuldade” para difundí-la).
Acontece que esses motivos são meramente para sustentar o discurso e fazer perene um conceito antigo que move o capitalismo: a mais valia. A mais-valia é um conceito criado pelo alemão Karl Marx, para entender as relações entre o tempo necessário para realizar um trabalho e sua renumeração. Para Marx, o esforço do trabalhador não é convertido em valores monetários reais no seu salário. E é exatamente essa desigualdade, ou exploração, que mantém o sistema funcionando. E não, eu não sou socialista.
A verdade é que sem a exploração do trabalhador — a qual é preciso ficar atento, pois vem camuflada em diversos termos como “sucesso profissional”, “progressão de carreira”, “crescimento”, “desenvolvimento”, e até mesmo de “oportunidades” — as empresas não crescem e os detentores do capital não acumulam mais capital.
Imagine que uma empresa produza um sapato por 50 reais incluindo os custos da matéria prima, impostos, a mão de obra da qual acabamos de falar, e todo o custo da estrutura da empresa, e o venda por 55 reais. A dinâmica disso é mais complexa mas vamos colocar dessa forma pra facilitar o exemplo. Isso daria um lucro líquido de 10%, o que na imensa maioria das indústrias é totalmente factível. Vendendo 1.000 sapatos desses por mês a empresa teria R$ 5 mil de lucro com esse único item. "E o salário ó!"
Essa empresa quer crescer, e logo vai perceber que se você produz 10 sapatos por dia sozinho, produzirá 15 sendo pressionado, digo, supervisionado. 20 se tiver metas a cumprir. 25 se souber que tem outras pessoas interessadas na sua vaga. 30 se em função dessa concorrência sua escolaridade atual não bastar. 40 se te oferecerem R$ 200 a mais de salário. E quando você menos esperar estará fazendo 50 sapatos por dia e mesmo assim não será suficiente, porque sempre é possível te oferecer uma esmola a mais de salário, sua formação fica mais obsoleta a cada dia, sempre tem gente precisando da sua vaga para sobreviver, e as metas nunca param de subir.
A cultura é isso. Não se engane, a empresa não está disposta a partilhar o lucro. Em raras instituições ela está disposta a ceder uma mínima parte em troca de novas metas para o ano seguinte.
E o presencial vai vencer. Sabe por quê? Porque a balança é desigual e em função do lucro excedente que falamos a pouco, as empresas aguentam uma série de demissões até vender a guerra (a IA veio pra ajudar inclusive. É lay off atás de lay off!) mas o trabalhador não aguenta 2 meses sem comida em casa.
Toda a narrativa do mercado gira em torno de “quanto vale uma hora de trabalho”. Mas a pergunta a ser feita deveria ser “quanto vale uma hora da vida de alguém?”. Quanto vale uma hora da sua vida?
Ir para o escritório todos os dias implica em horas de deslocamento, gasto com deslocamento, desgaste mental, desgaste físico, e por aí vai.
As empresas fingem se preocupar com os funcionários (sim, funcionários. Corta essa de colaborador) mas a real é a seguinte:
- A empresa se recusa a te dar ergonomia porque o budget está congelado. Mas na sua casa, você vai comprar uma boa cadeira, porque a sua coluna certamente vale alguma coisa pra você. PARA VOCÊ.
- Na sua casa você não sofre assédio
- Na sua casa a sua cor não importa
- Na sua casa você pode ir ao banheiro quando quiser (Sim, as empresas se preocupam com o tempo que você passa lá)
- Na sua casa a comida do refeitório é boa. Afinal você come lá todos os dias, diferente do seu patrão
- Na sua casa ninguém grita com você (só a sua esposa, às vezes. Mas ela dorme com você)
- Na sua casa você não corre o risco de enfartar, ou matar alguém, ou morrer no trânsito
- Na sua casa você decide se vai fazer hora extra
Quem aqui já viu alguém que trabalha em home office ir parar no hospital por causa do trabalho?
Pois bem, a quiet ambition de hoje, da qual as empresas têm se preocupado tanto é uma forma de valorizar a hora de vida mais que a hora de trabalho. Pensa bem: quem além de você mesmo deveria se preocupar tanto em (querer) ser promovido?
Viver é um interesse totalmente individual.
Se você tiver burnout, a empresa não pára. E se você morrer, a empresa não morre. Mas e se não tiver ninguém por perto para ser explorado?
E voltando ao exemplo do sapato, é claro que não dá pra produzir um tênis da Nike do seu quarto. Mas será que não dá pra mandar um e-mail ou subir um deploy?