Socratic: 10 aprendizados ao ser adquirido pelo Google
O Google adquiriu a Socratic em março de 2018. A Socratic, lançada em 2013, era uma startup de 10 pessoas, com um aplicativo que possuía um recurso de "ajudante de dever de casa" através da câmera do celular.
Depois da aquisição, o aplicativo foi retrabalhado e lançado como "Socratic by Google", focado em ser uma "IA tutora". Também disponibilizaram alguns recursos do aplicativo no Search e no Lens, lançaram um solucionador de matemática, criaram um protótipo de um tutor de matemática passo a passo e outros recursos que estão sendo usados no Google.
O artigo foi escrito em novembro de 2023 por Shreyans Bhansali, um dos fundadores, que compartilhou os aprendizados que teve ao longo desses quase 4 anos no Google após a aquisição.
1. Trabalhar no Google é como ter um segundo passaporte
Ao ir para qualquer cidade grande do mundo, o seu crachá dará acesso à um escritório do Google, com ótima comida, mesas, Internet, academia, sala de música etc. Além disso, você tem acesso imediato à tudo: ao monorepo com todos produtos, status dos data centers, documentos de estratégia e várias outras coisas.
Semana passada vi no Instagram um desenvolvedor dizendo que logo que entrou na Meta, teve acesso ao repositório monorepo com todo o código da Meta. Também vi um comentário dizendo que na Amazon o funcionário também tem acesso à todos escritórios, mas que é inferior (em relação ao Google) nas amenidades, comida e que a maioria dos escritórios não tem academia.
2. O Google faz as coisas do jeito Google (ou: Tudo precisará ser refeito)
Quase todo software e infraestrutura usados no Google foram construídos no Google, e isso é um resultado natural de enfrentar os problemas de engenharia mais difíceis antes da maioria das empresas.
Por causa disso, as chances de manter o código original do Socratic eram quase nulas. Precisariam passar pelos processos de discovery novamente, insights, codificação usando a stack do Google e as soluções deveriam seguir o padrão de qualidade do Google.
Apesar dessa exigência do "padrão Google", eles conseguiram manter o mascote Ceebo para o Socratic.
3. Coisas simples feitas repetidamente parecem mágicas (ou: Existe muito trabalho manual)
Reconstruir o app com veterenos da Busca do Google permitiu ter uma noção de como a própria Busca foi construída. Grande parte do trabalho de um engenheiro de pesquisa ou de IA envolve analisar exemplos, identificar padrões, rotular manualmente dados e outras análises não escaláveis e detalhadas.
4. A maioria dos problemas não vale o tempo do Google, mas os surpreendentes sim
A maioria dos problemas de 10 a 50 milhões de usuários não valem o tempo do Google e não se encaixam na estratégia deles. Mas eles farão um esforço significativo em problemas que se encaixam na natureza deles, na estratégia deles e nas metas de promoção de alguém.
A visão computacional é uma grande parte da interface do Socratic, especificamente a capacidade de ler texto e matemática em imagens. O Socratic usava uma ferramenta de terceiros, mas no Google isso não seria possível. Para o Google, às vezes, é mais fácil simplesmente comprar a empresa para trazer a tecnologia internamente. Outras vezes, como nesse caso, há uma equipe de pesquisa de IA interessada no problema, contratam um dos melhores talentos de PhD para trabalhar nele e entregam uma API de reconhecimento matemático de classe mundial em 6 meses.
5. O Google é uma rede de objetivos e esforços em constante mudança (ou: Burocracia e dificuldades na comunicação)
Coisas incríveis são possíveis no Google, se as pessoas certas se importam com elas. Navegar nessa confusão de interesses é metade do trabalho de um PM (Product Manager). E então você precisa da bênção de aprovadores como privacidade, confiança e segurança, e capacidade de infraestrutura. São necessárias dezenas de conversas para saber se uma ideia é viável, e centenas mais para torná-la realidade.
As metas da equipe podem mudar a qualquer momento, e equipes inteiras podem desaparecer diante de uma "reorganização", um fenômeno tão comum que os Googlers conseguem ignorar a tragédia e ver comédia nisso.
Você ainda pode descobrir que enquanto você estava trabalhando em seu projeto, duas equipes distantes também estavam trabalhando na mesma ideia, e apenas uma pode prosseguir. Os usuários internos dos projetos perdedores descobrirão que a API da qual dependiam agora está "obsoleta", mas a substituta ainda não está pronta.
6. Os Googlers queriam entregar um ótimo trabalho, mas muitas vezes não conseguiam (ou: Barreiras o suficiente para desanimar os mais animados)
O que desanima as pessoas que trabalham duro é a quantidade de avaliações, as frequentes reorganizações, as falhas passadas e a complexidade de fazer até mesmo coisas simples no cenário global. Startups podem se dar ao luxo de ignorar muitas preocupações, Googlers raramente podem.
Outra coisa que também atrapalha são as próprias pessoas — todas as pessoas inteligentes que conseguiam argumentar contra qualquer coisa, mas não a favor de alguma coisa, todos os líderes que não tinham coragem de falar a verdade desconfortável e todas as pessoas que foram contratadas sem um projeto claro para trabalhar, mas que ainda assim tiveram que ser mantidas por meio de um trabalho inventado e digno de promoção.
7. Organizações de alto escalão são difíceis de dirigir
Outro bloqueador para o progresso é o desequilíbrio de uma equipe. Uma equipe com vários cofundadores bem-sucedidos e veteranos de 10 a 20 anos no Google pode causar um impasse.
Essa estrutura pode funcionar se houver várias áreas para explorar, metas claras e forte autonomia para seguir esses caminhos. Mas em um produto unificado, é preciso um líder claro, com uma direção clara e mais realizadores do que pensadores. E, contraintuitivamente, adicionar mais pessoas a um projeto em estágio inicial não o torna mais rápido.
8. A dívida técnica é real. A dívida de processo também é
Engenheiros estão acostumados a falar sobre dívida técnica: um atalho hoje para economizar tempo e entregar um recurso. Boas equipes regularmente pagam dívidas limpando as coisas em dias mais calmos.
A dívida do processo também existe. Uma revisão adicionada por causa de um lançamento que deu errado. Uma nova verificação legal para se proteger contra possíveis litígios. Camadas se acumulam ao longo dos anos até que você acaba não conseguindo lançar um novo recurso por meses depois que ele está pronto porque ele fica preso entre as revisões, com um caminho de saída pouco clara.
Em alguns casos raros, os processos podem ser desfeitos, como encurtar questionários de alguma revisão ou diminuir a frequência desses processos. Às vezes é preciso de uma ameaça externa, como o ChatGPT.
9. Coisas incríveis são possíveis no Google, se você jogar o jogo certo (ou: Esteja alinhado com seus supervisores)
Primeiro faça o trabalho que lhe é dado. Uma vez que isso esteja sob controle, use a vasta rede do Google, aprenda o que está sendo planejado e inventado, tenha uma imagem clara do futuro, dê forma à ele por meio de documentos e demonstrações, encontre os líderes cujos objetivos se alinham com essa imagem e venda a ideia tão persistentemente quanto você puder.
Um exemplo positivo disso no Socratic foi com uma demonstração para um tutor de matemática passo a passo, construído em cima do solucionador de matemática do Socratic, feito por três integrantes da equipe ao longo de alguns meses. A demonstração possibilitou tornar a visão usável e compartilhável. Ela fundamentava conversas, dava às pessoas algo específico para reagir e ganhava vida fora da equipe, sendo passada adiante, discutida independentemente e voltando à equipe inicial.
Do lado negativo, um dos líderes da equipe tinha uma visão e fez com que designers fizessem ótimas demonstrações e as compartilhava sempre que podia, mas ele estava preso na parte errada da empresa, e os objetivos do seu chefe apontavam para outro lugar. Esse líder eventualmente mudou para uma equipe mais compatível, e seu sonho agora tem uma chance de se tornar realidade.
10. Muitas aquisições fracassam. A história da Socratic é mista
Por um lado, uniram duas culturas muito diferentes, o produto continuava vivo e cresceu para atender a ~5 bilhões de consultas por ano, e carreiras na equipe Socratic floresceram.
Por outro lado, o Shreyans Bhansali e o co-fundador Chris Pedregal, deixaram o Google para fundar outras startups, e nem a equipe Socratic nem o Google como um todo produziram um tutor com tecnologia de IA digno das capacidades do Google. Mas alguns Googlers da equipe Socratic ainda podem fazer isso acontecer, a menos que tenham sido reorganizados.
Apesar da última atualização do Socratic na App Store ter sido em junho de 2024, não existe mais uma versão no Google Play (o link retorna 404). Parece que ele foi deixado de lado, e que é comum isso acontecer com aquisições. Sua vida dentro do Google teria sido algo próximo de 6 anos, depende se podemos considerar que ele ainda está meio vivo por causa do iOS.
Como curiosidade, acredito que o math solver
do Google é o que o Shreyans mencionou algumas vezes nesse artigo:
Fonte: https://shreyans.org/google