Mais um projeto de software fracassado
Sair da zona de conforto é muito difícil. Medo do desconhecido, do fracasso, da perda de controle… Esses medos são forças contrárias que, muitas vezes, nos impedem de mudar.
Eu mudei no auge da carreira, até então. 23 anos, ganhando uma boa grana e trabalhando num ótimo lugar, eu resolvi largar tudo para empreender. Na época, foi bem difícil tomar essa decisão. Mas eu tomei. Foi um projeto fracassado que me fez tomar essa decisão.
Na edição de hoje da Newsletter do Moa eu resolvi contar essa história e compartilhar um pouco das minhas reflexões sobre o acontecido com você.
Bora?
Quando bate a vontade de mudar
Como eu já contei algumas vezes em edições passadas, minha origem é de classe média baixa. Como todo classe média sabe, o sonho de qualquer família que vive no perrengue financeiro é a tão sonhada "estabilidade". Na minha família isso não foi diferente.
Meu avô é policial militar aposentado. Face a outras categorias, a aposentadoria dele é muito boa. Ele possui a tal da "estabilidade". Devido a isso, eu sempre ouvi dentro de casa que "pobre tem que se garantir na vida".
O meu primeiro emprego na área de tecnologia, por coincidência, foi num lugar muito parecido com uma repartição pública (eu conto um pouco desse começo na edição #22). Era um escritório regional da OMS. Vários dos seus clientes eram prefeituras, governos e ministérios da saúde, tanto do Brasil quanto de outros países latinoamericanos. Dado esse contexto e também a grande parte do corpo de funcionários, que eram, de fato, servidores públicos "emprestados" ao projeto, o clima da empresa era de funcionalismo público.
Veja, não estou dizendo isso em tom de reclamação. Sou muito grato aos pouco mais de três anos que fiquei na BIREME. Foi lá que dei meus primeiros passos e aprendi, com grandes profissionais, como ser um bom programador. O salário também não era ruim. Eu ganhava bem, tanto para um programador, quanto para um menino de 20 anos de idade.
Acontece que esse clima era totalmente o oposto do meu espírito empreendedor. Esse espírito ainda era bem incipiente, mas já dava seus primeiros sinais de vida. Nessa época eu já fazia alguns freelas e tinha várias ideias de produtos.
Lembro que, no tempo vago que eu às vezes tinha por lá, eu construí o protótipo de uma automação de Twitter. A ideia era enviar uma mensagem automática para quem usasse determinada hashtag. Cheguei a ter algumas pessoas usando, mas sem sucesso (engraçado que, 10 anos depois, conheci uma pessoa que fez fortuna com uma ferramenta similar, mas no Instagram).
Depois de 3 anos trabalhando nesse local, minha jovem carreira acabou estagnada. Meses antes, um colega pediu as contas para trabalhar em outro lugar que pagava muito mais. Lembro de olhar esse movimento com espanto devido a sua coragem de mudar de emprego. "Que louco ele, trocar o certo pelo duvidoso" (kkkk hoje dou risada só de pensar o quanto eu era travado mentalmente). Mal sabia eu, mas esse movimento dele acabou plantando uma sementinha na minha cabeça.
Certo dia eu o chamei para tomar uma cerveja e colocar o papo em dia. A intenção por trás do convite era saber como estava a nova vida dele e, conforme fosse, tomar coragem para fazer o mesmo. O papo foi bom e ele me incentivou a procurar novos ares. Até cheguei a fazer uma entrevista no mesmo local em que ele estava trabalhando. O salário era muito maior, inclusive, e eu até comecei a sonhar com o carro novo que eu poderia comprar com todo aquele dinheiro. Não lembro porque, mas o papo não foi para frente.
Com a orientação dele, eu comecei a buscar novas oportunidades. As melhores vagas da época estavam nas listas de discussão de Python e Django. Fiquei durante uns 15 dias monitorando e entrando em contato com qualquer oportunidade que fosse interessante. Logo nas primeiras tentativas consegui agendar uma entrevista. Chegando lá, tive a sorte de ser entrevistado por um pythonista apaixonado. O fato de eu ter trabalhado diretamente com o Luciano Ramalho, uma das maiores sumidades do ecossistema Python do Brasil e do mundo, também jogou muito a favor.
Fui bem na entrevista. Gostaram bastante do meu código. Então, acabei recebendo uma proposta: Cargo de Programador Pleno, R$ 1.000 a mais no salário, fora diversos outros benefícios, como participação de resultados, café e coca cola grátis no escritório, massagem toda quarta-feira e até vale refeição (como eu tinha inveja dos meus amigos que tinham vale refeição). Aceitei!
No começo foi tudo mil maravilhas. Projeto novo, empresa nova, gente nova. Aquela sensação gostosa que a gente sente quando se depara com alguma novidade. O projeto era bem legal. Estávamos construindo um appliance de segurança. Explicando brevemente, é um dispositivo de segurança dedicado projetado para proteger a rede de uma empresa contra ameaças. Antes de trabalhar lá, eu nem sabia que isso existia. Até então, eu só vivia no mundo web do PHP e do Python.
Nosso time era responsável por desenvolver o firmware daquele dispositivo. Eu fiquei responsável, especificamente, pelo CLI (Command Line Interface). Olha que legal: construir uma linha de comando própria, com comandos próprios e tudo mais! Isso é o paraíso para um programador de 22 anos. O resto do produto estava na mão de uma galera bem boa também, tecnicamente falando.
Nós éramos um time a parte da empresa. Até então, a empresa vendia serviços de segurança para empresas de médio e grande porte. Para implementar esses serviços, a empresa tinha parcerias com os fabricantes dos appliances. A estratégia de negócio por trás do projeto era criar o nosso próprio appliance e morder essa gorda fatia dos projetos que ficavam para os parceiros.
Devido a esse contexto, nós éramos o "time dos especiais", afinal, nós éramos os responsáveis pelo projeto que faria a empresa decolar. Por isso, a gente era tratado de forma diferente. Diretores e até o dono da empresa davam uma moral grande pra gente. A gente até tinha algumas regalias, como poder chegar e sair a hora que quiser (estamos falando de 2013). No começo tudo é lindo…
A realidade da grande maioria das empresas de tecnologia
Me lembro de considerar o prazo do projeto como sendo relativamente longo (quanta inocência kkkk). Era algo em torno de 6-9 meses, não me lembro ao certo. O que me lembro é de termos passado dois dias inteiros dentro de uma sala de reunião fazendo um planejamento.
Nós mapeamos todos os pontos necessários e então colocamos tudo no Microsoft Project. Depois de estimar o tempo necessário, em dias, para entregar cada uma das funcionalidades, tivemos o output: a estimativa era praticamente o dobro do prazo determinado pela diretoria.
Então, como todo bom projeto cascata, começamos a cortar os dias. "A gente precisa mesmo gastar 30 dias para fazer uma interface simples? Não né. 15 dias tá bom!". Depois de muita ginástica, conseguimos encaixar a estimativa no prazo estipulado. Mal sabia eu que estava presenciando, pela primeira vez na minha carreira, a exata fórmula do fracasso de um projeto de software.
Depois de anos trabalhando em projetos dos mais diversos tipos, de tecnologia a marketing, uma das frases que mais ouvi e que mais faço questão de repetir é: "A planilha aceita tudo". Nesse caso, não era o Excel, mas sim o Microsoft Project. Obviamente aquele planejamento estava completamente fora da realidade. Mas isso não parecia incomodar a diretoria.
Nosso diretor, com anos de experiência em grandes empresas de telecom e acostumado ao tradicional modelo de gestão de comando e controle, era quem tocava o projeto. Volta e meia ele aparecia na daily para uma "injeção de motivação".
Conforme os meses foram passando, eu comecei a sentir que eu tinha entrado numa barca furada. Hoje, depois de anos e com muito mais maturidade profissional (e pessoal), eu consigo enxergar que aquele projeto não tinha a mínima possibilidade de dar certo. O time era muito bom, mas também era muito técnico e tinha pouca noção de gestão e de negócios. Além disso, faltavam recursos. Os responsáveis subestimaram a complexidade de se construir um appliance que iria concorrer diretamente com produtos de players gigantes, como CISCO, Fortinet, Palo Alto e Checkpoint.
"O difícil não é trabalhar muito. O difícil é trabalhar muito e não ganhar dinheiro".
Essa é uma frase que levo para a vida e que, com alguma adaptação, cabe em diversos cenários. A palavra "dinheiro", nesse caso, pode ser substituída pela palavra "prazer". Ou melhor: pela palavra "satisfação". A real é que ninguém gosta de trabalhar num projeto que claramente está dando errado e que não possui perspectiva de sucesso.
Na época eu ainda era bastante imaturo e inexperiente e não conseguia enxergar essa situação com clareza. Mas, instintivamente, eu já sentia que aquilo, de algum modo, não estava certo. É essa sensação que vai, aos poucos, minando nosso prazer em trabalhar. Mas esse "aos poucos" deu uma bela acelerada em duas situações específicas.
Lá para agosto começou o papo de que "estamos fora do prazo e, por isso, precisamos acelerar, portanto, vamos trabalhar de final de semana!". Isso já começou a me cheirar mal. Eu tinha uma viagem marcada há, pelo menos, uns 6 meses, para o feriado de finados, em novembro. Quando começou esse papo, eu já deixei claro que não ia desmarcar a viagem. Nesse feriado eu não ia trabalhar. Acontece que, nessas idas e vindas de prazo e cronograma, a data de entrega foi alterada justamente para a segunda-feira seguinte ao final de semana da minha viagem.
Como eu já tinha avisado desde sempre que aquela viagem existia e que eu não iria cancelar, o que fiz foi dar um gás e garantir a minha entrega. Chegou na quinta pré-feriado, eu simplesmente peguei minhas coisas e fui para a minha viagem. Acontece que eu tinha entregado minha parte, mas o time não. Acontece também que "entregar" não é a parte final. A parte final é garantir que tudo estava funcionando corretamente (algumas partes entregues minhas não estavam).
Conclusão: o projeto não foi entregue e ficou um clima bem chato. Toda essa situação me incomodou muito, na época.
A segunda situação que acelerou a minha insatisfação e me deixou de saco cheio de tudo aconteceu na virada de ano. Com o prazo de entrega estendido para Janeiro, daríamos o gás final no fim do ano. O clima era de "tem que entregar, se vira!", ou seja: trabalhamos que nem uns malucos no natal e no ano novo. Eu, devido a questão anterior e movido por um sentimento de culpa, trabalhei bastante. E adivinha o que aconteceu…
Não entregamos. De novo!
É claro que não entregamos. Aquele prazo era fora da realidade. Além disso, o escopo mudava toda hora. Não tinha como, com aquele time, entregar aquele projeto naquele prazo. Havia tantos erros de planejamento que a gente poderia ter o maior prazo do mundo e, ainda sim, acredito que não conseguiríamos entregar.
Eu, meio que inconscientemente, percebi isso. Foi quando decidi pedir as contas. Foi uma decisão meio impulsiva. Pela primeira vez na vida eu ganhava o dinheiro que desejava mas não tinha tempo para desfrutar. Isso me deixou muito puto. Então, eu esperei o bônus de janeiro cair na conta e, no dia seguinte, pedi pra sair.
O que aprendi com tudo isso
Durante muito tempo eu fiquei "brigado" com minha profissão. Na minha cabeça, trabalhar com tecnologia era sinônimo de trabalhar longas horas sob intensa pressão. Hoje, depois de velho e muito mais maduro, acredito que eu consigo fazer uma análise sóbria e realista sobre essa história.
Durante muito tempo eu fiquei com a sensação de que tinha traído meus colegas e abandonando o barco. Sentia certa culpa e vergonha por ter abandonado o projeto antes de conseguirmos entregar algo minimamente aceitável. Hoje eu estou muito em paz com esse assunto.
A real é que aquilo nunca ia dar certo. Tanto que não deu. Um colega me contou, anos depois, que o projeto se estendeu por mais um tempo e depois foi cancelado. Chuto que mais de um milhão de reais (no mínimo) foi para o lixo.
Hoje eu vejo que o que fiz foi simplesmente seguir meus instintos. Inclusive, acontecimentos como esse me mostraram que, na grandesíssima maioria das vezes, seguir meus instintos me levou a bons lugares.
Na real, esse foi o meu primeiro passo para a vida empreendedora. Foi o início da busca pelo o que eu sempre desejei: ter autonomia. Esse foi o meu primeiro ato de coragem rumo ao empreendedorismo. A ideia, na época, era tocar um empreendimento paralelo, o Instaplay (um dia conto essa história).
Hoje, olhando para trás, percebo que eu tinha vários sonhos, mesmo que inconscientes. Eu desejava tocar OS MEUS projetos. Eu desejava ser jogador profissional de poker. Eu desejava ter liberdade de tempo, liberdade geográfica. De novo: eu queria ter autonomia.
Mesmo que o Instaplay não tenha vingado, eu vejo que esse foi um dos grandes pontos de inflexão da minha vida. Pela primeira vez eu percebi que eu tinha condições de me sustentar de forma independente, sem precisar de um emprego. Pela primeira vez eu pude desfrutar (e abusar) da liberdade de não ter um chefe. Dormir até tarde, trabalhar de madrugada, fazer balada no meio de semana. Comecei a perceber também, ainda que de forma inconsciente, que ter autonomia era muito mais difícil do que eu pensava. Isso foi a semente para eu começar meu processo de desenvolvimento pessoal.
A conclusão final dessa história é que esse ato de coragem foi muito bom para mim. Houve erros da minha parte? Sem dúvidas. Errar é humano. Ainda sim, o saldo foi positivo.
Claro, é importante citar que eu só consegui sobreviver depois de pedir as contas porque eu tinha uma habilidade muito requisitada pelo mercado da época: eu programava há 5 anos e tinha bastante experiência em Wordpress. Grande parte do meu ganha pão veio de projetos desse tipo.
Sair do zero para o um, quando falamos da busca pela autonomia e pelo empreendedorismo, é uma questão muito mais psicológica do que prática. É muito menos difícil do que parece. O que nos impede, na grande maioria das vezes, é o medo do desconhecido.
Por isso, se você tem uma habilidade que é requisitada pelo mercado e tem vontade de pedir as contas e arriscar viver de forma independente, vá fundo! Crie uma reserva de emergência de uns 6-12 meses e mete as caras. O máximo que vai acontecer é não dar certo. Se isso acontecer, você volta a trabalhar para os outros. Por ser programador, você tem essa vantagem.
Sair da zona de conforto e tomar certo risco faz bem!
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