Como foi minha experiência ensinando programação em uma das melhores universidades do mundo

Sabe aquelas coisas que você só faria se recebesse um empurrão? Tipo pular de para-quedas ou viajar sozinho por semanas? Esse ano fiz isso, ao me inscrever para ser um section leader para o Code in Place, um curso de programação da Universidade de Stanford.

O curso

O Code in Place é um curso anual, gratuito, aberto a todos os interessados em aprender programação, criado a partir da iniciativa de dois professores de Stanford durante a pandemia. Ao se deparar com as aulas presenciais suspensas, eles resolveram recriar um dos cursos mais populares de introdução à programação de Stanford, o CS106A, para o formato online.

Vídeo de introdução do curso:

Estrutura do curso

O curso acontece em uma plataforma online. As aulas são no formato de vídeos, os estudantes precisam completar exercícios para ganhar um certificado ao final do curso e podem iteragir com a comunidade através de um fórum de discussão.
No começo é ensinado o Karel, o robô, que é um Python simplificado em que tudo é centrado em controlar um robô dentro de um tabuleiro. Após esse aquecimento com o Karel, começa-se com o Python.
Durante o curso aprende-se sobre:

• Loops e if else com Karel
• Como resolver problemas de programação
• Usar o console
• Funções e estrutura do código
• Usar módulos do Python
• Gráficos
• Listas e dicionários

Até aqui nada de novo, mas o que torna o curso diferente dos outros são as sections.

O que são sections?

Em muitas universidades americanas um grupo de estudantes que está inscrito em um determinado curso (por exemplo, curso de Introdução à Programação) é dividido em um ou mais sub-grupos, que são chamados de sections (ou seções, no sentido de divisão, em português).
A vantagem de criar subgrupos é poder dar uma atenção mais personalizada, além de possibilitar discussões e criar um ambiente mais interativo, o que seria impossível em uma sala com mais de 200 estudantes. É algo que realmente faz falta em muitas faculdades e cursos no Brasil.
Cada subgrupo recebe um líder (chamado de section leader, ou líder da seção), que normalmente é um estudante veterano que já concluiu o curso, e que tem a missão de:

• Tirar dúvidas dos estudantes sobre o conteúdo de cada semana
• Incentivar os estudantes para que sejam participativos e contribuam com suas próprias ideas durante os encontros
• Fazer uma revisão do conteúdo apresentado na semana
• Conduzir o grupo para que eles possam resolver o desafio de programação da semana
• Tornar o ambiente agradável e participativo

As sections acontecem uma vez por semana durante as 6 semanas de aulas. No Code in Place é um momento em que os estudantes têm a oportunidade de se sentir parte de uma comunidade e tirar dúvidas do conteúdo com pessoas de carne e osso.
É importante dizer que ser um líder de uma section é uma atividade voluntária e não remunerada. Entre os líderes, há desde CEOs, a estudantes de Stanford e até ex-alunos que completaram o curso!

Como me inscrevi para ser um section leader

O curso tem o objetivo de ter um líder para um grupo de aproximadamente 10 pessoas.
O processo de inscrição é bem tranquilo e em nenhum momento eles querem saber se você é uma espécie de gênio da programação. Eles esperam por pessoas com diferentes históricos que estão dispostas a contribuir como líderes.
Durante os testes, completei alguns problemas em Python, que considerei tranquilos para quem já tem uma certa experiência.

O que pegou para mim foi fazer um vídeo meu simulando como eu falaria em uma section😨
Apesar de saber falar inglês, fazer um vídeo para ser avaliado foi um momento de tensão para mim. A minha sorte é que a apresentação era estruturada, com objetivos bem definidos, então não precisei improvisar muito.
Depois de alguns dias, chegou um e-mail falando que havia sido aprovado!😁

Apresentação com outros líderes

Depois da aprovação precisei participar de um encontro no Zoom com outros líderes que foram aprovados. Esse foi outro momento de grande tensão para mim, pois a grande maioria dos participantes era de estudantes de Ciência da Computação de Stanford ou de pessoas que já tinham muitos anos de experiência na área (sou formado em Psicologia). Para piorar, não sabia o que iria fazer no encontro, o que aumentou o meu nervosismo!

Após uma apresentação inicial, a coordenadora do encontro explicou o que iríamos fazer durante o curso e depois ela separou as pessoas em subgrupos e pediu para que cada um simulasse como iria explicar os conceitos para que os outros participantes dessem feedback depois.
Quase tive um ataque do coração, pois não tinha me preparado para isso e já estava achando que ia me enrolar todo, pois tive que refazer meu vídeo de simulação pelo menos umas 10 vezes😱

No final de tudo fiquei mais tranquilo. Vi que todos estavam no mesmo barco e tinham suas dificuldades para apresentar, como timidez, insegurança e inexperiência. Na minha vez de apresentar, fiz o que todos fizeram e recebi os mesmos feedbacks de todos.
Conheci um cara que havia aprendido programação por conta própria como eu e estava se sentindo mais deslocado ainda, pois ele nunca havia se formado em uma universidade.
Isso tudo me deixou mais tranquilo em relação ao curso, pois vi que todos ali eram humanos como eu, com seus defeitos e inseguranças.

Preparação

Todos os líderes precisam passar por um breve curso online, em que eles ensinam como seria uma section ideal:

A ideia principal é que o líder não fique falando o tempo todo, mas sim, fale o menos possível e incentive os estudantes a ficarem confortáveis para exporem suas próprias ideias e dúvidas.

Eles querem se afastar o máximo possível do formato de aula tradicional, onde o professor fica falando e os estudantes ficam quietos.

Sejam gentis

Outra coisa que me marcou muito é que, apesar de ser uma universidade de elite, eles reforçam o tempo todo o conceito de gentileza:

• Se um estudante tem problemas de conexão ou comunicação, é perfeitamente ok que ele use o chat para se comunicar.
• Não use expressões como: "Ah, isso é muito fácil" ou "Qualquer um consegue fazer isso"
• Não elogie performace, elogie esforço. "Parabéns por estar se esforçando nesse problema" ao invés de "Você é muito bom!"

Incentive a curiosidade!

O que eles reforçaram muito é de incentivar a curiosidade dos estudantes para que o aprendizado aconteça.
A explicação é que quando ficamos curiosos com algo, existe uma motivação natural que nos faz querer saber mais e com isso, fazemos mais perguntas, que por sua vez, propiciam oportunidades para que todos do grupo possam aprender.
Eles entendem que esse ambiente com alta participação é o ingrediente principal para um aprendizado de alta qualidade e a curiosidade é a maneira natural de fazer com que esse ambiente exista.

Como são as aulas, ou melhor sections

Fugir do formato tradicional de dar aulas é realmente desafiador! Na minha section a maioria das pessoas era dos EUA ou Canadá, mas tinham pessoas da Colômbia, China, Argentina e também de países do Leste da Europa!

As sections começavam mais quietas, mas com algumas atividades quebra-gelo e explicar que o objetivo era fazer com que fosse um ambiente mais participativo possível, as pessoas foram ficando mais à vontade.

Ao decorrer dos encontros, percebia que sempre havia os que falavam mais e os que ficavam de lado. E também aqueles que chegavam nos encontros com tudo feito e outros que ainda não havia visto nada do conteúdo. Ficava muito difícil ter um ritmo em comum sendo que haviam pessoas que andavam muito rápidas e outras que estavam mais para trás.
O que me ajudou foi um section leader me aconselhar, que na dúvida, a sempre focar nos que têm mais dificuldade. E faz total sentido, pois ali é um curso de introdução e o objetivo é focar nas bases.
As sections eram estruturadas da seguinte maneira:

• Quebra gelo enquanto os estudantes entram na sala do Zoom
• Espaço para perguntas e revisão dos conceitos da semana
• Resolver o desafio de programação da semana, que vai um pouco mais além das aulas e exercícios que os estudantes já resolveram. Nesse momento o grupo é dividido em subgrupos de até 4 pessoas para se ajudarem a resolver o desafio

Um recurso que me ajudou muito é ter um feedback de um AI depois de cada encontro, mostrando algumas métricas como:

• Tempo que eu falei x tempo que os estudantes falaram
• Falas de estudantes em que eles manifestaram curiosidade
• Momentos em que chamei os estudantes para compartilharem ideias
• Momentos em que pedi apra um estudante expandir mais a ideia que ele lançou ou que usei a ideia dele para promover a discussão

Esse feedback me fez usar diversas estratégias para ver o impacto delas após cada um dos encontros e me permitiu melhorar muito o meu ensino!

Impressões gerais

Pode soar estranho, mas:

A melhor forma de aprender é ensinar

Seja escrevendo, gravando vídeos, respondendo às dúvidas no StackOverflow, responder a perguntas realmente te faz pensar de uma outra forma e elevar o seu conhecimento atual a um novo nível. É muito diferente achar que entendeu depois de ler um vídeo no Youtube e depois de ter explicado os mesmos conceitos do vídeo para uma outra pessoa.
E aprendi muito, tanto reforçando conceitos em Python, o meu inglês e minhas habilidades de comunicação.
Fiquei extremamente agradecido por ter a oportunidade de ver pessoas aprendendo programação do zero e crescendo a cada semana, apesar das dificuldades pelo caminho. É muito gratificante a sensação de ter feito parte desse processo!☺️
Gostei demais da experiência e recomendo a todos que têm interesse em ensinar e compartilhar conhecimento que se tornem voluntários na próxima edição.

Por que ser um section leader, pelos próprios criadores do curso:

Como ficar sabendo das próximas edições?

Eu recebi uma newsletter no final de Março sobre o início das inscrições. Comecei a receber e-mails de Stanford depois de ter me inscrito em um curso de programação de deles que está hospedado no Coursera. Eu recomendo que façam a inscrição em um desses cursos para que não percam a data do próximo Code in Place😉

Espero que tenham gostado do relato e fiquem à vontade para perguntar!😃